sábado, maio 12, 2007

Livro das Crónicas da Guiné


Em boa hora fui convocado a ver de perto essa mancha de indiferença que alastra mais veloz do que qualquer deserto. É a Guiné à nossa janela. Ou melhor, sendo a Guiné uma janela nossa, parece que não perceberemos nunca que há labaredas de indescritível miséria que nos entram casa adentro. E nos consomem devagar.
O Dicionário da Academia das Ciências certamente não encontrou a palavra que pode descrever o que sinto quando relembro o que vi nos olhos pasmados de uma criança, uma mãe preta, um mais velho. Porque neste mundo em que os distantes infernos em imagens nos invadem todos os dias, enquanto estamos refastelados no sofá de scotch on the rocks numa mão e salgadinhos rançosos na outra, há palavras que já consumiram o pavio que nos obrigavam a apagar com urgência os nossos incêndios de consciência.
Este não é o tempo de ser-se sibilino, qual cardeal da Cúria, para assumir um gesto que prevaleça sobre o mar de palavras com que a bem-pensância politica nos inunda sem descanso. Porque eu vi o que é o desespero sitiado e não encontro a palavra certa que o descreva. Perdoem-me. Porque eu conheço um provérbio árabe que nos recorda como um sitiado é sempre um vencido. Porque eu penso na tese de Malraux de que os homens mais tocados de humanidade não fazem revoluções: fazem bibliotecas e cemitérios.
Não há tempo para uma paixão fria. Nem há mais tempo para ouvir aquela morna que pergunta: Quem mostra'bo ess caminho longe? Agora é tudo uma questão de amor. Amor mesmo! Nem que seja por nós próprios …