terça-feira, maio 29, 2007

Livro das Crónicas da Guiné (6)

Enquanto vou aqui desfiando as minhas memórias, entre a dor que comove pelo que vi e a esperança que me mobiliza para o que hei-de ver, há quem se entretenha a pensar o mundo através de gulosos olhos fardados com palas de alpaca. É o caso de uma Excelência que, nada tendo feito e nada se adivinhando vir a fazer por causas que nos enobrecem, decide pintar de negro as próprias fuças, talvez na esperança de que com abraços de urso outros possam também ser atingidos.
O que vou escrevinhando não é nada que se compare ao extraordinário, sublinho ordinário, Projecto de Relatório da dita Exa. Porque eu falo das minhas emoções. A Exa. fala das suas tolas preocupações. Porque eu escrevo do que me vai na alma. A Exa. escreve do que pensa que lhe falta no bolso. Porque eu sonho. A Exa. delira. Porque eu sei. A Exa. presume. Porque eu confio nas pessoas. A Exa. desconfia da própria sombra.
Talvez tudo isso se deva ao facto da Exa. estar instalada na capital da paróquia. E pense que tudo o resto não passa de um enorme circo onde a saloiada de vida alegre e fácil se diverte. É a visão da parvónia plena de radiosas personagens de que não se sabe o modo de vida, mas que a Exa. parece querer escrutinar. Talvez tudo isso se deva ao facto de eu imaginar ainda uma Lisboa civilizada. Mas observando o vómito do figurão, presumo que se transformou num escarro de si mesma. Revisitada assim, Lisboa parece-me apenas uma mercearia ou um medíocre estábulo onde alguns encostam o rabo. Mas Lisboa já não tem tino, nem bom senso, boa gente, nem gente boa? Nem nada? Não creio que assim seja, sinceramente!
Não compreendo a inquietação e o choro que algum indígena possa ensaiar, como se a expedição à Guiné tivesse sido uma fogueira ardendo suavemente, para gáudio de poucos ou de um só que seja. Nem tenho paciência para ouvir coveiros, na sua rotina de pouco sóbria fantasia, acerca da necessária grande barrela a interesseiros armados em pseudo-humanitários. Felizmente a Exa., com a inteligência que lhe coube, não teve o despautério de pedir contas ao cêntimo do chouriço, da aguardente com mel ou de outras iguarias que todas as toleironas figuras da expedição decidiram pagar repartidamente do seu próprio bolso, para que se preparassem fugazes almoços para tão longa viagem.
Haja quem responda pessoalmente aos quesitos colocados por inigualável pavão que, caindo na banalidade de desconhecendo o que quer que fosse, pronuncia judiciosos pareceres sobre a matéria. Perante tantos e curiosos exemplos de falta de originalidade, de mau siso e pouca reflexão, ocorre perguntar se não estaremos perante o eterno problema: é que mesmo que o palerma se julgue dono do palácio, ainda assim se esquece sempre de puxar o autoclismo?
Compreender o que faz correr a Exa. é todo um programa em que me escuso de participar. Porque não me faço definitivamente acompanhar por gente pouco recomendável, nem dou ouvidos a conversas de caserna entre comadres. E porque a Exa., ao apresentar o que apresentou e como o fez, sem cuidar de saber mais e melhor, tinha de ciência certa que nada é mais atraente que os escritos desonestos.
Como disse Jorge de Sena: O problema não é salvar Portugal, mas salvar-nos de Portugal. A que eu acrescentaria: e sobretudo de alguns Portugueses…