sexta-feira, janeiro 09, 2009

Livro das Crónicas de África



Como estou aqui decido continuar rumo ao sul. São cento e oitenta quilómetros até à Baía dos Tigres e depois oitenta até à Foz do Cunene. O ideal são dois jipes e mais gente, para que havendo dificuldades nos possamos acudir. Está traçada a vigem. Vamos pela praia e pernoitamos lá na fronteira com a Namíbia da Costa dos Esqueletos. Depois, havemos de calcorrear o Iona, passar pelo acampamento do Tito na Espinheira e abancar na Gruta do Turra. E finalmente Tambor, S. João do Sul e Moçâmedes. A todo o vapor saímos de madrugada a fazer conta às marés. Reforçados de gasóleo e muita água. E já agora um farnel bem composto onde não falte peixe de escabeche. Vamos a isso!
Deixamos para trás Porto Alexandre, onde perdura, no imaginário de algum mais velho que ainda não sofra de deslembranças, o caso de Maria da Cruz Roldão. Mulher Olhanense, viúva do pescador Tomé do Ó, conhecida como a Regedora. Figura lendária do final do século XIX, ficou célebre como enfrentou os oficiais do navio de guerra Inglês HMS. De bandeira ainda monárquica azul e branca desfraldada, meteu-se num bote e intimou os britânicos a retirar das águas portuguesas.
São dunas e mar e um mar de dunas até à baía dos Tigres. Diz-se que quem ama o deserto ama o mar. E aqui estão os dois elementos em toda a sua grandeza e esplendor. É de matar ou então só cegar incautos esta prenhidão tamanha. Um mar imenso a bombordo que abalroa de frente com a vastidão do deserto a estibordo numa toada que parece de choro sofrido e repetido. Umas vezes vamos a patinhar na água e outras voamos na crista das dunas. Com os pneus meio vazios cavalgamos o tempo numa luta insistente e teimosa contra as vagas de areia solta. Como um veleiro no mar alto a cavar ondas sem parança. Não vemos vivalma. Apenas um garajau tonto e desorientado, perdido da sua costumeira rota. E restos de velhos navios que o mar piedosamente sepultou na praia. A espuma deste oceano, soprada pelas ondas, adormece e morre na areia. Esta terra não foi feita nem para gente nem para bichos. Só o vento consegue viver aqui. E mesmo assim o seu queixume é constante e bastas vezes violento. Há quem diga que a denominação Baía dos Tigres se deve ao ruído enervante de fera molestada que o redemoinhar da areia provoca no cone superior das dunas.
O sol sente desejos de beijar o dia. O cacimbo cerrado faz-lhe frente, mas o astro vence-o transbordando para além do horizonte o seu vermelho fogo de paixão. Deita então a cabeça no mar e espreguiça-se por sobre as dunas. Como que a querer reanimar este fim do mundo onde nem o mais triste e solitário dos tigres resistiria.