sexta-feira, dezembro 22, 2006

Eu sou o meu herói

Aqui nas dunas a falar-te de mim.
Dos sonhos que dançam comigo todas as noites. Inverno de andorinhas que pousam devagar e teimam que não sabem voar. Dos carreiros de areia fina onde os meus passos se vingam em marcha lenta. Vales perdidos entre montes sem fim quando perguntavas por ti e eu sem me encontrar. Dos velhos ribeiros que me correm nas veias querendo ser ondas e ter uma praia para namorar. E que morrem cansados na ilusão de que são rios caudalosos ou até correntes do mar. Do sabor a sal que há no silêncio das palavras por dizer. E nas promessas por fazer. Tempestades caprichosas que me dão guinadas ao destino por domar. Do cheiro a fruta madura que apetece e que o teu corpo me parece. Coração debruçado no parapeito dos olhos com que retoco os teus cabelos em desalinho no ar.
Aqui nas dunas a segredar-te por mim.
Dos gritos calados. Dos silêncios magoados. Das tardias manhãs que não voltam mais. Das miragens que há nos meus olhos desertos. Das noites de lua cheia que iluminam os verões. Os meus dedos trémulos de espanto nas esperas da tua pele. Os teus lábios incendeiam-me os sentidos. Uma tempestade anunciada. De mãos e corpos à beira do precipício, línguas de sol a pique, paixão à borda do abismo, amor, amor. A teia tecendo a aranha. Vem, minha, tua, teu, mulher, fogo, fogueira, isso, mais, sim, noite fora, desejo, dá-me, dou-te, recebe-me, teu, os braços e os abraços. Perco-me e perdendo-me minto-te e desminto. Falta-me tudo quando já toda te tenho. Adivinho-te a alma remendada de estrelas enquanto o fumo do meu cachimbo invade o céu.
Aqui nas dunas a descobrir-te para mim.
Finalmente convoco os deuses todos e cego-lhes os olhos. Prendo-lhes as mãos atrás das costas. Ato-os e desato-me por fora e por dentro de laços e nós. Faço alinhar um pelotão de fuzilamento. Pergunto-lhes pelo último desejo. Brindo à vida e embebedo-me de sangue. E faço três vezes o sinal. O sinal da cruz fazes três vezes. Então eu sou barco, eu sou vela e sou vento, marinheiro de primeira viajem e eu sou gajeiro. Eu fui o feitiço e o feiticeiro. E habito uma espada que dói. E te fende assim devagar. Porque eu sou mar depois de tanto te amar. E eu sou o meu herói.